Notícia
Projetado para ‘não funcionar mais’: obsolescência programada é uma forma de crime corporativo?
Pesquisadores defendem que a obsolescência programada constitui um crime ambiental corporativo
Ola Dapo via Pexels
Fonte
Universidade Erasmus Rotterdam
Data
quinta-feira, 21 abril 2022 14:20
Áreas
Direito Ambiental. Economia. Gestão de Resíduos. Indústria. Negócios. Políticas Públicas. Sociedade. Sustentabilidade. Tecnologias.
Os caros dispositivos eletrônicos notoriamente têm vida útil curta. A maioria dos telefones celulares começa a apresentar problemas técnicos após dois anos de uso; algumas impressoras têm um número predeterminado de páginas que imprimem antes de pararem de funcionar; e muitos produtos de consumo são projetados para serem praticamente impossíveis de reparar. Às vezes, esses produtos quebram devido ao desgaste normal, mas na maioria das vezes, os produtos foram deliberadamente projetados para se tornarem obsoletos. Por quê? Para aumentar o volume de negócios, levando os consumidores a comprar novos produtos, de novo e de novo. Toda a economia de consumo material é intencionalmente construída para não durar – uma estratégia de negócios conhecida como obsolescência programada.
Um segredo aberto por mais de um século, os planos de negócios que apostam na quebra e substituição de produtos de consumo já foram considerados uma solução sólida para ‘acabar’ com a Grande Depressão. Mas têm persistido em muitos novos disfarces. Na década de 1950, comprar algo “um pouco mais novo, um pouco melhor, um pouco mais cedo do que o necessário” foi cunhado como uma estratégia para o sucesso no design de produtos de consumo. Meio século depois, os varejistas da moda anunciam 24 ‘micro-estações’ em vez das tradicionais duas (primavera/verão e outono/inverno), atraindo os consumidores a substituírem suas roupas mais rápido do que nunca.
A obsolescência programada não é um tema novo no meio acadêmico: tem sido estudado como teoria econômica, desde a década de 1980, e mais recentemente como estratégia empresarial e caso de ética empresarial. Na última década, estudiosos do direito estudaram as iniciativas legislativas em alguns países para banir a obsolescência programada ou analisaram os meandros jurídicos das ações coletivas. Também surgiram questões normativas sobre qual resposta jurídica – direito da concorrência, direito de defesa do consumidor, direito ambiental ou direito penal – é o mais adequado para regular a obsolescência programada.
Com o objetivo de garantir compras regulares de coisas que não necessariamente precisam ser compradas regularmente, a obsolescência programada desperdiça recursos não renováveis do planeta e custa caro aos consumidores. Isso leva ao excesso de lixo e poluição, e a produção constante de novos produtos esgota os recursos naturais mais rapidamente do que de outra forma. Especialmente para eletrônicos de consumo, o tamanho e a toxicidade dos resíduos são problemáticos devido às substâncias tóxicas que contêm e à escassez dos metais (preciosos) usados para produzi-los, que muitas vezes derivam de práticas extrativas associadas a abusos dos direitos humanos.
Os produtos tornam-se obsoletos de diferentes maneiras. Produtos ou peças de produtos podem ser projetados para falhar de forma confiável após um período de tempo, também conhecido como obsolescência física, integrada, de projeto ou programada. Vários casos vieram à tona recentemente graças a denunciantes, que entraram com ações coletivas contra fabricantes de eletrônicos de consumo. Smartphones que são tornados mais lentos intencionalmente por meio de atualizações de software, forçando os consumidores a substituir baterias ou comprar novos telefones. Essas empresas enfrentaram ações judiciais na Itália, França e Portugal sobre suas supostas estratégias de obsolescência programada. Em outros casos, a obsolescência programada é uma estratégia mais sutil de obsolescência percebida, também conhecida como obsolescência psicológica ou de estilo. Isso acontece quando os consumidores veem atualizações de produtos ou novos lançamentos sendo anunciados como mais desejáveis, mais estéticos, mais elegantes (ou até mais ‘ecológicos’) do que o produto ainda perfeitamente funcional que eles já possuem.
A França é o primeiro e até agora único país a ter legalmente definida, proibida e penalizada a obsolescência programada via Código do Consumidor. Os fabricantes que forem considerados culpados de “reduzir deliberadamente a vida útil dos produtos para aumentar a taxa de substituição podem receber uma multa de 300.000 euros – cerca de R$ 1,5 milhão ou até 5% do faturamento médio anual dos últimos 3 anos – ou uma pena de prisão de 2 anos”.
Os formuladores de políticas estão cada vez mais reconhecendo a obsolescência programada pela prática comercial insustentável que é. Iniciativas na Suécia, Holanda, Itália, Finlândia e Áustria abordaram isso por meio de políticas sobre garantia, reparos, direitos do consumidor ou economia circular. No entanto, qualquer tipo de política ambiental que não leve em consideração a expectativa de vida prematura propositadamente projetada desses produtos perde o ‘elefante na sala’. E grupos de defesa do consumidor legitimamente irados com os modelos usurários de ‘assinatura’ para serviços que são permanentes, como software, mas escasseados artificialmente, deveriam investigar a obsolescência programada para entender melhor o germe desse comportamento corporativo.
No artigo “Designed to break: planned obsolescence as corporate environmental crime“, recentemente publicado na revista Crime, Law and Social Change, os pesquisadores Dra. Lieselot Bisschop e o Dr. Yogi Hendlin, da Universidade Erasmus Rotterdam, nos Países Baixos, juntamente com o Dr. Jelle Jaspers, da Deloitte Forensic & Financial Crime, defendem que a obsolescência programada constitui um crime ambiental corporativo. Com base em vários exemplos, os pesquisadores discutem os fatores e consequências da obsolescência programada usando a literatura de crimes corporativos como um quadro de análise, integrado com insights da filosofia ambiental, ciências da administração e direito. Eles encorajam criminologistas e outros acadêmicos a investigar essas estratégias de negócios não apenas por sua insustentabilidade, mas também por sua relevância criminológica. O crime de resíduos eletrônicos há muito se estabeleceu como um tópico digno de nota, mas a obsolescência programada como estratégia de negócios que permite a geração excessiva de resíduos não. Ao se concentrar na obsolescência programada, as intervenções legais e a harmonização de políticas podem adotar uma abordagem de prevenção de saúde pública para crime ambiental corporativo.
Acesse o artigo completo na revista Crime, Law and Social Change (em inglês).
Acesse a publicação completa na página da Universidade Erasmus Rotterdam (em inglês).
Fonte: Dra. Lieselot Bisschop e Dr. Yogi Hendlin, Universidade Erasmus Rotterdam. Imagem: Ola Dapo via Pexels.
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